Faça Coisas Inúteis by Crisdias Boa Noite Internet
Faça coisas inúteis - by crisdias - Boa Noite Internet #
Excerpt #
Nós inventamos o fim de semana, mas a nuvem carregada dos velhos tabus ainda paira sobre essa pausa, e a combinação do secular com o sagrado nos deixa inquietos. Essa tensão apenas aumenta a culpa que muitos de nós continuamos a sentir por não trabalhar e leva à sensação incômoda de que nosso tempo livre deve ser usado para algum propósito maior do que a diversão. Queremos lazer, mas também temos medo dele.
Nós inventamos o fim de semana, mas a nuvem carregada dos velhos tabus ainda paira sobre essa pausa, e a combinação do secular com o sagrado nos deixa inquietos. Essa tensão apenas aumenta a culpa que muitos de nós continuamos a sentir por não trabalhar e leva à sensação incômoda de que nosso tempo livre deve ser usado para algum propósito maior do que a diversão. Queremos lazer, mas também temos medo dele.
Essa semana foi aniversário da Clarinha (15 anos!!!!) e por isso meus pais vieram do Rio nos visitar pela primeira vez em 1 ano e meio. Espero que você perdoe o atraso na newsletter por conta disso.
A frase “o tempo é a coisa mais valiosa que temos, uma vez gasto nunca mais volta” deveria ser motivadora, causar o efeito de nos inspirar a não gastar tempo com coisas que nos fazem mal, que não merecem a nossa atenção. Na sociedade do cansaço ela virou um chicote — que apontamos para nós mesmos. “Você está aproveitando o seu tempo ao máximo???”
O mundo está com uma epidemia de produtividadização. Tudo tem que servir para alguma coisa, de preferência no sentido monetário mesmo. Você fez um pãozinho caseiro show? E se vendesse por aí? Crochê? Bora criar uma conta no Elo7? Curte um videogame? E se virasse streamer profissional na Twitch? A galera acha que você escreve bem? Faz uma newsletter paga! (xi…)
Todo hobby é uma startup em potencial. Trabalhe com o que você ama! Busque seu propósito!!!
Mesmo quando a ideia não é monetizar diretamente, tudo é performance. Se eu vou ver uma série na TV, jogadão no sofá, é melhor eu ver um documentário que vai me ensinar alguma coisa que eu use no trabalho, certo?
Ler um livro ou jogar videogame? O que vai ser mais eficiente?
Se eu só tenho poucas horas livres no espaço entre acabar de trabalhar e ir dormir, eu preciso fazer esse tempo valer. Senão de que adiantou todas as horas durante a semana me vendendo ao sistema????
As redes sociais me puxam para comparar a minha performance com as dos outros. Eu deveria estar brincando com minhas filhas mais, que nem aquela família ali. Olha esse meu prato de comida, que vergonha. E o meu café? Pozinho coado no filtro de papel? Que lamentável, ele podia ser muito mais!
Um dos comentário que a Anna recebeu no Pouca Vergonha foi elogiando ela abordar o sexo como uma pessoa normal e não sob a pressão de “como ser pleeenaaaa sexualmente”. Como performar. 1
Eu digo chega! Nessa semana que passou eu fiz um trabalho do jeito mais errado dos últimos anos e vim aqui afirmar: fazer coisas inúteis é bom demais.
This ship is on fire #
Decidi voltar a programar, me atualizar no que está acontecendo no mundinho do código. Escolhi como base a plataforma do Node.js… porque sim. Porque me pareceu a mais na modinha. Também a que tem mais bibliotecas. Até largar de vez a vida da programação profissional e vir pra comunicação eu programava em Ruby. É a linguagem que eu usava até hoje para fazer minhas pequenas gambiarras (e um botzinho de Telegram) e sempre que eu ia procurar uma biblioteca já pronta pra me facilitar o trabalho, aquilo que eu queria quase sempre estava liberado como um módulo Javascript, só de vez em quando em Ruby. Ruby virou linguagem de tiozão, seja por limitações técnicas ou simplesmente anti-modinha. Vai saber.
Eu comecei a me familiarizar com o Javascript da maneira errada: peguei um livro e comecei a ler de capa a capa. Errado não por conta do material escolhido, o livro é até bom. Eu o tratei como um romance, uma coisa pra levar no Kindle e degustar debaixo do cobertor. Em nenhum momento abri um editor de código para colocar em prática o que eu estava lendo. “Tudo bem, eu estou entendendo.” Não era mentira, eu só não estava aprendendo nada, porque a essa altura da vida eu já devia saber no mundo só se aprende fazendo.
A jornada estava divertida e por conta de buscas para entender mais alguns conceitos comecei a ver uns vídeos no YouTube e agora que o algoritmo descobriu que eu me interesso por isso, sempre tem um vídeo do canal Fireship na minha home. Os motivos que fizeram com que esse canal seja hoje habitante fixo do meu YouTube valem um pequeno desvio de caminho para falar de conteúdo online em geral.
Imagine por alguns minutos aqui comigo que em vez de ser um pré-idoso que quer voltar a programar igual um adolescente, eu sou um alienígena interessado nessa coisa que os humanos parecem adorar: carros. Eu quero saber tudo sobre carros! Então estou lá aprendendo e aparece uma palavra nova para mim, uma coisa que acabo de descobrir que os carros têm: volante.
Eu jogo no Google “volante” e logo aparece “volantejs.org - site oficial do volante”. O que normalmente acontece comigo ao chegar no site é que não fica claro o que é um volante, só como ele é incrível e como obviamente eu preciso de um.
“Com volantes a direção fica muito mais simples, porque usamos plataformas orientadas a serviços, padrões de mercado como Xaaps e Lalelilolu, permitindo que você instale e use o volante onde quiser, podendo focar no que realmente importa: dirigir.” O volante é uma marca de carros? Uma peça? Um jeito de dirigir? Fica difícil saber… Sites de plataformas tecnológica me soam assim. É quase como se me dissessem “se você não entendeu isso, bom, nós não queremos você aqui. Cresça e apareça.” Talvez eu mereça.
Eu me rebaixo, e tal qual um jovem vou para o YouTube e busco essa coisa que estou tentando entender o que é. Lá eu consigo minhas respostas… em vídeos de 45 minutos?!? “Curso total com tudo o que você precisa saber!” Eu não sei nem se eu quero saber. Eu não tenho 45 minutos pra descobrir que no fim das contas isso não me tem nenhuma utilidade. Eu tenho certeza de que você entende tudo sobre o assunto, sabe cada detalhe e vai me conduzir em uma jornada incrível. Só me diz o que é isso, pelamor!
Foi aí que me a palavra do Fireship entrou em minha vida. O canal sempre aparecia na busca oferecendo vídeos com o apetitoso título “XYZ em 100 segundos”. Sim! Eu tenho 100 segundos!
São ótimos 100 segundos. Outra característica interessante do Fireship — que me fez lembrar os vídeos do meu ex, o BuzzFeed Tasty — é que o canal faz vídeos que te obrigam a dar pause. (e isso é bom) Se tudo que você quer é o famoso “estou só olhando, não vou comprar nada” ele te entrega a resposta rápido. Até que no dia em que você quiser usar aquele conteúdo de verdade você vai precisar dar pause a cada momento.
O jeito “normal” de canais que te ensinam coisas (de programação a culinária) é imitar a TV de antigamente e fazer “em tempo real”. A pessoa está ali digitando, errando, abrindo configurações… Se você só quer ver onde aquilo vai dar, vai precisar ficar adiantando o vídeo 2 o tempo todo. E se estiver seguindo os passos? Também! Porque vai pausar o vídeo para poder mudar de tela (ou olhar para o fogão) e quando voltar vai precisar pular aquele passo.
Por exemplo, ontem eu fiquei mais de 1 hora nesse vídeo de 25 minutos, seguindo os passos para configurar uma aplicação. Eu ainda não cheguei ao fim. (essa newsletter não ia se escrever sozinha)
O conteúdo do canal tem um ótimo ritmo, são bem produzidos (não é só um marmanjo falando pra câmera e mostrando a sua tela de vez em quando). Eu gostei tanto do Fireship que acabei comprando um curso dele para tentar entender esse mundo de Node, React e apps rodando na nuvem. Ele me fisgou com vídeos simples e no fim levou o meu dinheiro.
I’m back, baby!
Jogue sua vida fora, gostoso demais #
Uma das coisas que ficou me travando para voltar ao mundo do código foi que eu não tinha nenhuma ideia do que construir — além das minhas gambiarras que resolvem problemas simples e levam só algumas horas pra botar de pé e por isso não me levariam a aprender realmente nada novo. Eu não tinha nenhuma ideia de um novo app que vai mudar o mundo. E quando tinha essa ideia descobria que alguém já tinha feito. Era eu produtivizando as coisas, é claro.
Foi então que eu resolvi fazer coisas inúteis.
Eu normalmente comento de expressões em inglês que não conseguem passar o mesmo sentimento em português. Nesse caso a expressão hobby fica melhor aqui na nossa língua: passatempo. É só pra isso, pra fazermos uma coisa tão divertida e interessante que o tempo passa sem notarmos.
Eu resolvi construir coisas que não iam virar a nova startup milionária, mas que iam me forçar a descobrir. Como diria a propaganda de isotônico colorido: testar os meus limites. E por ser só um passatempo, eu poderia fazer isso do jeito que eu quisesse. Mesmo que isso significasse ser o menos eficiente possível.
O curso que eu comprei me parece ser bem completo e bem explicado. Esse é o jeito certo de aprender, repetindo os passos. Colocando na tela pra ver o que acontece. Até porque é impossível resistir à tentação de mudar só uma coisinha pra ver o que acontece… Ainda assim, eu só estou seguindo passos de uma coisa que já tem todas as respostas resolvidas. Não há becos sem saída. Não há “e agora?”. Só uma coisa inútil ia poder realmente me ajudar!
Justamente por conta desse jeito “siga os meus passos”, uma das coisas que eu me peguei fazendo foi copiar o código fonte do site para jogar no meu Notion, para poder adicionar anotações e com isso ser fácil achar mais tarde.
Não é difícil fazer isso manualmente. Não é nem (muito) chato, em alguns minutos eu teria resolvido tudo. Só que como eu comentei n O Código, uma das forças que move a mente de quem programa é nunca, jamais, fazer uma tarefa pela segunda vez. Se repete, pode ser automatizado. Eu vi ali uma oportunidade de fazer uma gerigonça totalmente inútil e exagerada, mas que ia colocar a minha cabeça para realmente construir uma coisa, ir além do “cola isso aí no VS Code 3 e roda pra ver o que deu”.
Esse projeto inútil passou por várias fases, incluindo coisas que pareciam ótimas ideias mas acabaram jogados fora. No fim ficou mais ou menos assim:
Uma extensão de Chrome que, quando ativada, procura todos os blocos com código fonte.
Um servidor feito em Express que eu rodo aqui na minha máquina. Ele recebe os dados da extensão Chrome, formata de acordo com o meu gosto e se conecta com a API do Notion para criar notas com as coisas copiadas e preparadas para as anotações.
(Eu acredito que daria para fazer tudo client-side, mas aí eu não teria mexido com Node. A inutilidade é um requisito da arquitetura do sistema!)
É como se pra ler o manual do carro eu fosse em um ferro velho, juntasse peças, pra no fim entrar no carro só pra ligar aquela luzinha perto do retrovisor. “Ah pronto, agora sim…”
Em sabia que era exagero e que ia dar 100x mais trabalho do que simplesmente apertar ctrl-c, ctrl-v. Só que no processo eu entendi como funcionam extensões de Chrome, como fazer requisições assíncronas (se você não sabe o que é isso, sorte sua), como testar APIs usando o Postman. E basicamente tudo sobre Javacript, que eu nunca tinha usado na vida, fora um popupzinho ali em 2005.
Foi inútil, foi caro (meu tempo, essa coisa tão valiosa) mas foi um prazer fazer e ver aquilo pronto. Nem que seja pelas gargalhadas maníacas “meu Deus, eu sou loucooooo”. (pelo menos rendeu uma newsletter)
Foi incrível e me deixou com a sensação de que se eu fiz isso eu consigo fazer qualquer coisa.
Na oficina #
[
Arte
A cultura do hobbyismo não vem de hoje. Uma das suas expressões da moda ja há algum tempo é a ”cultura da oficina”, que prega que todo mundo deve saber consertar coisas (de preferência carros e motos). Consertar suas próprias coisas é uma questão de responsabilidade. Aquilo é seu, então conserte você. Dizem que Steve Jobs se inspirou muito pelo livro mais famoso dessa turma.
Consertar suas próprias coisas não é o motivo por si só. Para resolver o problema é preciso entender como aquela máquina funciona. É preciso raciocinar em cima daquilo. É preciso também saber lidar com o erro quando você sem querer cortar uma mangueira de óleo. E também é preciso fazer um trabalho bem feito, bonito, limpo, como falamos n O Trabalho não é o Trabalho.
O escritor americano Matthew B. Crawford conta no livro Shop Class as Soulcraft: An Inquiry into the Value of Work que só quando você faz as coisas com as próprias mãos você consegue realmente apreciar um trabalho bem feito 4. Ele fala de tubulações de metal dobradas com perfeição como quem fala de uma escultura de Rodin ou Donatello. Por que não? Só que ao contrário dos grandes mestres o trabalho de mecânicos, eletricistas e dobradores de tubulação (seja lá qual for o nome disso) não está exposto em nenhuma galeria. Muito pelo contrário, eles ficam escondidos atrás de paredes e casas de máquinas e talvez nunca sejam vistos por ninguém — no máximo pela próxima pessoa que vier fazer um reparo por aí. Ainda assim precisa ser belo.
É bem mais barato (e prático) levar seu carro para uma oficina, mas aí somos nós de novo produtivizando a vida. Shop culture também pode ser uma opção estética. Dá pra ver que alguém mexeu naquilo, que “violou os termos da garantia”. Estamos tão condicionados a comprar nossos objetos que não toleramos na nossa casa tenha algo com cara de que foi consertado — e ainda por cima, o absurdo!, por nós mesmos. Porque consertar suas próprias coisas é coisa de quem não tem dinheiro para simplesmente jogar fora e comprar outra. Quem conserta é uma “sub pessoa”, um encarregado. Eu, patrão, tenho coisas mais úteis para fazer.
Inútil #
Sempre existe algo útil a ser feito. A fila é infinita, até porque a recompensa por um trabalho bem feito é mais trabalho. Ficar na roda da ansiedade para tentar tirar mais uma coisa da lista não vai resolver o problema. Coisas inúteis são a fuga.
No passatempo de programar o que me atrai é a sensação de fazer aquilo e chegar ao fim do jeito que eu quis. “Sob meus termos”, como diriam heróis de filme de ação. Eu não tenho prazo, não tenho relatório para entregar, eu não precisei vender a ideia para ninguém, não vou nem colocar no Github porque vai ofender a estética de alguém (e certamente algum termo de serviços).
Nosso trabalho “sério”, profissional, aquele que paga boletos, é uma batalha entre as tarefas de curto prazo (revisar um roteiro do podcast do cliente) e longo prazo (criar um curso ou simplesmente desenhar a estratégia de marketing da empresa). Essas coisas só vão dar resultado lá na frente — se dermos sorte. Nossas cabeças precisam de recompensas emocionais agora, pra gerar a sensação de “ ai que vontade de trabalhar!”. Fazer coisas inúteis é como um micro-sabático no meio do dia. É dançar sem ninguém estar vendo, porque é só para nós.
Feito é melhor do que perfeito. Feito é melhor do que não fazer e ficar só dentro da sua cabeça. O único jeito de sair da cabeça é fazendo coisas. Olhar por essa lente me fez entender que qualquer coisa que eu fizer é útil.
A diversão é fazer, quebrar a cara. Reconhecer a ignorância e pedir ajuda (nem que seja no Stack Overflow). E no fim ter algo pra mostrar, nem que seja só pra mim.
Por hoje é só #
Como sempre, espalhe a palavra desta newsletter, e o melhor jeito dela crescer. Aproveita e me marca (se for nas xoxal redes) para eu ver como você descreve isso aqui. Obrigado pela coquinha zero desta semana.
Cuidem dos seus e até a próxima newsletter. crisdias
No episódio sobre fetiches ela inclusive comenta que muita gente no mundo BDSM olha para nós “praticantes do sexo baunilha” como pessoas inferiores, que não aproveitam tudo o que o sexo pode oferecer. Faixas-brancas do prazer. ↩
A maior dica da vida do YouTube é que você pode pular 10 segundos para frente ou para trás apertando as teclas J e L no teclado. No celular é só tocar 2 vezes no canto esquerdo ou direito da tela. ↩
Aliás… VS Code. Caramba, que editor incrível. Tão incrível que merece um dia virar pauta. Não por ser bom, mas por ser de graça. Vem aí. ↩
Além é claro de saber quando estão te enrolando. Como o cara da assistência técnica que queria me cobrar R$ 250 pra formatar e instalar o sistema operacional em um MacBook velho aqui. Um processo que é, basicamente, ligar o computador apertando 3 teclas ao mesmo tempo e escolher a opção “recuperar o sistema”. ↩